Artigo Terra: conservar para (sobre)viver

26/03/2020

 

Eu sou a terra, eu sou a vida.

Do meu barro primeiro veio o homem.

De mim veio a mulher e veio o amor.

Veio a árvore, veio a fonte.

Vem o fruto e vem a flor.

Eu sou a fonte original de toda vida.

Sou o chão que se prende à tua casa.

Sou a telha da coberta de teu lar.

A mina constante de teu poço.

Sou a espiga generosa de teu gado

e certeza tranquila ao teu esforço.

Extraído de O Cântico da Terra, de Cora Coralina.

Em abril comemoramos duas datas importantes para todos que trabalham com solos no Brasil. Dia 15 é o Dia Nacional da Conservação do Solo e há 50 anos comemora-se no mundo inteiro o Dia da Terra em 22 de abril. Comemorações em meio à crise sem precedentes causada pela pandemia do Covid-19 são muito difíceis, com o mundo sofrendo a pior crise econômica e de saúde em um século. Mas, ainda que a excepcionalidade da crise nos cause desalento e desesperança, este pode ser um momento importante para refletir e avaliar nossas ações como profissionais e como cidadãos.  Os solos são o foco dos estudos e do trabalho da grande maioria de nós integrantes da Sociedade Brasileira de Ciência do Solo (SBCS). E a vida na Terra está intimamente relacionada com os solos.

Terra na língua portuguesa pode se referir ao planeta em que vivemos; ao nosso lugar de origem (pátria, terra natal); à parte sólida da superfície da Terra, por oposição ao mar; à uma propriedade rural (minha terra, meu sítio); e ao solo, onde é possível cultivar plantas, criar animais, produzir alimentos, madeira, fármacos e outros produtos essenciais à vida na Terra.

O solo é a principal base para atividades humanas. É fonte direta ou indireta dos nutrientes que alimentam os seres vivos, cuja presença e diversidade é uma característica inerente ao planeta Terra, pelo menos até o momento. O solo tem papel fundamental na produção de biomassa, abriga as partes subterrâneas de plantas e nele podemos encontrar uma grande variedade de organismos vivos, como bactérias, fungos, algas, protozoários, minhocas, insetos e mamíferos. Por ser poroso, com poros de diferentes tamanhos, o solo permite tanto a circulação quanto a retenção de água; atua tanto como reservatório, quanto como filtro de toda a água que por ele passa. No solo encontramos materiais com origem orgânica e mineral, em estado sólido, líquido ou gasoso, e nele ocorrem reações e processos químicos, físicos, biológicos, geoquímicos, bioquímicos e mineralógicos.

O solo tem papel importante nos ciclos biogeoquímicos, é fonte de matéria prima e abriga recursos geológicos e arqueológicos fundamentais para a compreensão da evolução da Terra e da vida. Em ambiente tropical, os processos de alteração são mais intensos, as chuvas podem ser muito erosivas e a biodiversidade exerce o papel fundamental de manter o equilíbrio do sistema solo-clima. Rompendo-se esse equilíbrio, principalmente por meio da eliminação da vegetação nativa diversificada e substituição por extensas áreas de monoculturas de ciclo curto que exploram apenas a camada superficial do solo, são desencadeados processos que causam grandes prejuízos.  Esses processos não surgem apenas na forma de erosão ou de aumento da incidência de pragas e doenças, cedo ou tarde surgem também prejuízos econômicos e sociais, como perda de produtividade, aumento de gastos com insumos e migração de população rural para centro urbanos.

Portanto, proteger o solo é manter a sua capacidade de reproduzir a vida, de armazenar e reciclar nutrientes, e de decompor a matéria orgânica. Conservar o solo é fundamental porque contribui para regular o fluxo de água e o ciclo hidrológico e manter sua função de filtro para elementos e substâncias, garantindo a qualidade das águas superficiais e subterrâneas. Usar o solo adequadamente, em especial com atividades agrícolas, permite produzir alimentos, fármacos, fibras, madeira, e material para uso na indústria.

A agricultura é altamente dependente do clima e as mudanças climáticas em curso1 modificam a produtividade e os ganhos financeiros no setor agrícola. No Brasil, são muitas as experiências bem-sucedidas e inúmeros os profissionais com conhecimento técnico robusto em sistemas agropecuários produtivos. Essas experiências e conhecimentos evidenciam que quanto mais diversificado é o sistema agrícola, maior a sua função ecossistêmica e a sua resiliência. O uso sustentável dos solos e a recuperação de vegetação nativa e de áreas degradadas são ações fundamentais para restaurar o equilíbrio e a sustentabilidade do ambiente rural e urbano.

Atualmente, o país conta com políticas públicas como o Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura (Plano ABC) e o Plano Nacional de Recuperação da Vegetação Nativa (Planaveg), que são exemplos para diversos países de como estimular a conservação do solo e proteger a Terra, garantindo a competitividade e a sustentabilidade do setor agrícola2. Esses planos favorecem a adoção de sistemas integrados (lavoura-pecuária, lavoura-floresta, pecuária floresta e lavoura-pecuária-floresta), que são menos susceptíveis a variações do clima e têm o importante papel de otimizar o uso de recursos naturais e poupar terra, além de possuírem maior valor agregado. Esses planos estimulam também sistemas agroflorestais, florestas plantadas com espécies nativas ou exóticas, e a recuperação e restauração ecológica, que garante o ciclo hidrológico, o fornecimento de água e de alimento para o meio rural e urbano, e mantém a vazão dos cursos d’água.

Que possamos nos unir em torno do compromisso de proteger o ambiente em que vivemos.  Portanto, é necessário que profissionais das diferentes áreas do conhecimento, e em particular os da Ciência do Solo, incentivem a adoção de modelos de desenvolvimento justo. Conservar solos em áreas rurais implica em utilizá-los dentro dos limites de sua capacidade e em adotar sistemas de produção de baixo impacto e que contribuam para mitigar os impactos já causados. Conservar solos urbanos exige que adotemos políticas inclusivas, que assegurem o direito a terra nas áreas rurais e a moradia adequada nas áreas urbanas, não empurrando populações mais pobres para as áreas mais frágeis ou insalubres. Que possamos compreender que doenças atingem ricos e pobres, mas são os pobres os mais penalizados, porque são os mais frágeis.

Vamos aproveitar esta pandemia para refletir e ajustar nosso olhar para a Terra, para a nossa terra e para os solos. Que todos possamos compreender que somos seres inteligentes e poderosos, mas um vírus pode matar milhões de nós em alguns meses. Nossos conhecimentos e tecnologias podem nos levar muito longe e muito rapidamente, mas se não respeitarmos o ambiente, nós é que perdemos.

A autora, Maria Leonor Lopes-Assad, é professora aposentada da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

1- IPCC, 2014. IPCC. Climate Change 2014: Mitigation of Climate Change. Disponível em: https://www.ipcc.ch/report/ar5/wg3/. Acesso em: abril 2020.

2- Assad, E. D. et al. Papel do Plano ABC e do Planaveg na adaptação da agricultura e da pecuária às mudanças climáticas. Working Paper. São Paulo, Brasil: WRI