Autores: Marta Vasconcelos Ottoni; Carlos Rogério de Mello; Márcio de Oliveira Candido e Quirijn de Jong van Lier *
A complexidade da natureza manifesta-se na contínua transformação de corpos terrestres — sólidos e líquidos — durante ciclos geoquímicos e interconectados com a vida biótica e os demais elementos do sistema planetário. Essa intrincada teia de transformações e ciclos torna a vida possível no Planeta Terra. Um corte representativo de sua esfera revelaria, em escala planetária, a interligação de seus elementos, permitindo a conceituação e, posteriormente, a quantificação dos processos (e.g. físicos, químicos, biológicos, hidrológicos etc.) que operam na Terra, uma vez que suas formulações processuais e matemáticas sejam conhecidas. É intuitivo, portanto, compreender que os processos que regem a Terra se desenvolvem em uma estrutura ou arquitetura particular, cuja manifestação é largamente dependente da escala espacial e temporal de observação.
Para reforçar a ideia sobre a relação entre escala de representação da arquitetura dos elementos da Terra versus seus correspondentes processos, daremos um exemplo: Imaginemos uma pequena bacia hidrográfica sendo observada a olho nu por um observador posicionado na superfície da Terra. Essa superfície torna-se um ponto para um astronauta sobrevoando e observando o planeta. Assim, se toda arquitetura tem um processo ou funcionalidade associado, podemos então dizer instintivamente que os processos representados na escala observada por observador em Terra devem ser bem diferente daqueles caracterizados numa escala planetária.

No entanto, pode-se perguntar: o processo na escala da microbacia não está ocorrendo ao mesmo tempo que o processo representado na escala planetária, então, por que eles são diferentes? Eles são diferentes porque quando estamos na escala global, levamos em consideração não só a pequena bacia hidrográfica do exemplo, mas outros terrenos que estão adjacentes ao da pequena bacia e que possuem outras estruturas e processos terrestres. Assim, a estrutura e processo que se manifestam para o observador planetário é como se fosse uma média das arquiteturas e processos terrestres observados na bacia hidrográfica do nosso exemplo e na sua região de entorno. A questão da dependência do tempo na relação arquitetura versus funções (ou processos) terrestres também é muito relevante, pois os ciclos bioquímicos (ciclos da água, carbono, organismos vivos, etc) estão operando continuadamente na Terra, fazendo transformações na sua arquitetura e, por sua vez, nas funcionalidades associadas.
Dada a importância dessa temática na hidrologia, vamos abordar sobre esse assunto neste artigo, visando destacar alguns conceitos e desafios na caracterização da arquitetura do elemento terrestre solo e seus processos hidrológicos, já que os solos são um dos principais reguladores do ciclo da água e da vida no Planeta.
Arquitetura e funcionalidades hídricas em escala global
A heterogeneidade do solo, em escala planetária, é observada em diferentes unidades pedológicas representadas por uma camada relativamente fina na superfície da Terra. Nessa dimensão espacial, enxergar o solo a olho humano como um corpo integrado e relacionado a processos terrestres pode ser um desafio, mesmo numa escala muito pequena, onde se manifesta o complexo sistema sólido-poroso. Para caracterizar o solo na escala global, recorre-se ao uso de
satélites que orbitam a Terra, realizando imagens constantes da estrutura do nosso sistema.
Os produtos dessa tecnologia são diversos e com resolução compatível com diversos estudos (na ordem de metros a quilômetros), gerando informações sobre a estrutura e comportamento do relevo, os chamados modelos digitais de elevação, do uso e ocupação do solo ao longo do tempo, comportamento do armazenamento de água em bacias (umidade do solo e aquíferos) e até inferências sobre os constituintes minerais das rochas. Com base nessas imagens e informações de campo, pedólogos podem fazer inferências sobre as unidades pedológicas globais da superfície terrestre, cada uma apresentando uma arquitetura conceitual representativa da variação do solo em profundidade.
Assim, por meio dessa caracterização arquitetônica do solo, representam-se os processos que ocorrem nesse ambiente, entre eles, os hidrológicos. No entanto, para entender tais processos, especialmente o armazenamento e os fluxos de água, faz-se necessário determinar as propriedades hidráulicas desses ambientes em escala global. Enquadram-se entre as propriedades hidráulicas, a retenção de água (variantes com a sucção de água retida nos poros) e a condutividade hidráulica (também variante com a sucção). Essas propriedades fazem parte da formulação da equação de Richards que é nosso principal modelo para a descrição espaço-temporal da variação da umidade em meios porosos, mas alguns estudos levantam a hipótese que essa equação não é válida para representar os processos hidrológicos no solo na escala mais global. No entanto, permaneceremos aqui presumindo como válida essa formulação na quantificação espaço-temporal das variações da umidade no solo planetário.
Os sensores remotos de umidade do solo (exemplos: SMAP, SMOS, e agora NISAR) são um dos potenciais produtos para estimativa dos parâmetros hidráulicos mencionados em escala mais global por meio da modelagem hidrológica inversa (usando também outros dados hidrológicos como precipitação e evapotranspiração). Essa representação global das propriedades hidráulicas parece bastante promissora, pois consegue incorporar os efeitos do uso e ocupação do solo, da histerese, dos fluxos preferenciais na zona vadosa e da hidrofobicidade, todos afetando largamente a retenção e os fluxos de água.
Uma das limitações ao uso desses sensores de umidade na estimativa das propriedades hidráulicas globais é que eles só conseguem ilustrar uma pequena fração da profundidade do solo, alguns poucos centímetros, perdendo-se uma importante parcela do solo na quantificação dos processos hídricos. Além disso, a modelagem inversa não parece ser uma tarefa trivial e nem sempre se tem sucesso no resultado.
Cumpre explicar aqui a histerese das propriedades hidráulicas do solo, antes de darmos prosseguimento no assunto em pauta, dada sua importância nos processos hidrológicos. A histerese representa uma discrepância entre os valores da retenção ou da condutividade hidráulica, em determinada sucção (ou energia), no caso de sua determinação durante a secagem ou no molhamento do solo. Se o solo perde água por secagem (água sai do solo), o teor de água retido no sistema poroso sob uma determinada sucção será diferente do teor retido pelo processo de umedecimento (a água entra no sistema solo) para a mesma sucção. Esse tema tem muita relevância na hidrologia, pois alguns processos hidrológicos se dão por umedecimento (ex: infiltração) e outros por secagem (ex: percolação, evaporação). Assim, as propriedades hidráulicas no solo (retenção de água e condutividade) vão variar de acordo com o processo que está sendo representado. Não ampliaremos a discussão da histerese aqui, por não ser o propósito deste artigo, mas a ciência do solo e áreas correlatas devem investir mais nesse assunto.
Alternativas e Desafios para a Caracterização de Propriedades Hidráulicas
Uma alternativa ao uso de satélites para quantificar globalmente as propriedades hidráulicas em solos e levando em consideração as variações do solo em profundidade, é caracterizar as propriedades hidráulicas em perfis representativos das unidades pedológicas. A principal desvantagem é que os valores seriam médios por unidade e não variantes no espaço como são os resultados obtidos pelos sensores de umidade. Outro problema diz respeito às próprias unidades pedológicas: seriam elas representativas, podendo ser consideradas coincidentes com unidades hidrológicas? No entanto, estamos lidando com uma escala global, e as variações do solo dentro de uma mesma unidade pedológica não parecem ser muito significativas para quantificar os processos hidrológicos nessa escala.
Contudo, essa proposta enfrenta diversos desafios:
1- Representação da Variabilidade:
Não basta apenas um único perfil representativo por unidade pedológica, já que em cada uma dessas unidades há variações texturais, de uso e cobertura, que afetam as propriedades hidráulicas do solo. Esse fato já aumenta o tempo e esforço nos trabalhos de campo.
2- Limitações dos Métodos Laboratoriais:
Para minimizar o trabalho operacional de testes em campo, as propriedades hidráulicas são determinadas em amostras de solo indeformadas em laboratório que, dependendo do seu tamanho, podem não reproduzir as macroestruturas porosas
do solo. Os métodos laboratoriais também não levam em consideração o fenômeno de histerese. A maioria mede retenção de água e condutividade hidráulica pelo método da secagem.
Uma saída parcial para superar essas dificuldades é medir no campo as propriedades médias no perfil do solo por meio dos
testes de infiltração(hoje existem tecnologias automáticas para essa medição), levando-se em consideração uma área não muito pequena para poder representar as macroestruturas porosas do solo. O volume de água necessário nesses testes permanece um desafio, especialmente quando se trata de áreas distantes de fontes hídricas. Contudo, as propriedades hidráulicas médias obtidas por esse método também não levam em conta a histerese, pois os testes de campo representam as propriedades por umedecimento.
3- Variações Temporais:
Como considerar as variações das propriedades do solo no tempo, já que o efeito do uso e cobertura tem se mostrado bastante variável no espaço e tempo?
Apesar das limitações mencionadas, a representação das propriedades hidráulicas por perfil representativo das unidades pedológicas globais, considerando os resultados analíticos laboratoriais em amostras bem caracterizadas no campo, é, no nosso entendimento, o procedimento mais fácil e prático para representar os processos hidrológicos nessa escala.

Os testes de infiltração no campo, apesar de mais representativos das unidades macroestruturais, demandam muito tempo, água e são muito trabalhosos. É crucial que os perfis sejam representados por usos e coberturas típicos das unidades pedológicas, visto que sabemos o efeito deles na determinação dessas variáveis.
A questão da representação do volume que deve ser amostrado corretamente para medição das propriedades hídricas é um assunto que merece maior investigação. As amostras usuais de 100 cm3 podem estar longe de representar esse volume representativo do solo, chamado REV, e há sugestões na literatura para indicação do melhor tamanho amostral.
A questão da histerese ainda é um desafio, e a comunidade científica precisa também se dedicar mais a essa temática, especialmente nos métodos em laboratório, com antes dito. A hidrofobicidade ainda é um termo pouco tratado no Brasil e pode ter um efeito relevante na geração do escoamento superficial quando a chuva se inicia em períodos muito secos.
Para incorporar a questão da variabilidade temporal das propriedades hidráulicas na modelagem hidrológica do solo, uma proposta simples seria utilizar os dados inventariados mundialmente de propriedades hidráulicas do solo relativos ao uso e cobertura atual da simulação. Isto é, se no mesmo local, a cobertura variar, usam-se os dados registrados do uso atual obtidos de outro local da mesma unidade pedológica.
Pedometria e Escalas Territoriais
Uma outra opção para caracterizar as propriedades hidráulicas nos perfis representativos dos solos globais, é a utilização de técnicas de pedometria. Nesse cenário, é imprescindível o acesso a uma ampla base de dados de propriedades físico-hídricas para que os modelos de variáveis preditivas versus variáveis preditoras (aqui podendo ser os atributos físicos, químicos e variáveis ambientais do processamento de modelos digitais de terreno), também chamados de pedofunções, sejam desenvolvidos. O desafio é ter acesso a esses dados, em especial, em solos tropicais.No entanto, as publicações científicas têm cobrado cada vez mais transparência nos processos editoriais, exigindo que haja acesso às bases de dados utilizada nos estudos, o que tem motivado a comunidade científica a compartilhar seus resultados analíticos, especialmente, em repositórios de dados existentes mundo afora. Fizemos avanços significativos nesses últimos anos no compartilhamento de dados abertos. No Brasil, já temos o SoilData e o HYBRAS, o primeiro com compilações de dados de levantamentos pedológicos realizados no Brasil e o segundo com informações de propriedades hidráulicas em solos do pais. No entanto, esperamos evoluir cada vez mais nesse assunto com a incorporação de dados de regiões ainda carentes de acesso às informações de solo.
Agora, em se tratando de outras escalas territoriais, no caso a do nosso território nacional e regional (ex: na ordem de 50.000 a 100.000 km2), a arquitetura e a determinação de sua funcionalidade hídrica podem seguir os mesmos padrões de representação de estrutura e propriedades hídricas propostos na escala global. Quando se trata, porém, de escalas de microbacias (ex. <10.000 km2), o desafio amostral do solo é maior no sentido de representar a variação da arquitetura do solo mais detalhadamente. Contudo, os recursos do sensoriamento remoto ainda podem ser muito úteis nessa escala, como, por exemplo, na determinação dos mapas digitais de solos, já que as resoluções dos produtos do sensoriamento podem ser na ordem de poucos metros. A pedometria nessa escala tem sido uma ferramenta de sucesso nesses mapeamentos, reduzindo custos e agilizando as produções.
As propriedades hidráulicas nessas escalas podem ser definidas em amostras distribuídas aleatoriamente ou seguindo alguma metodologia amostral, mas a dificuldade amostral e analítica, seja em laboratório ou em campo, ainda persiste, como antes já mencionado. Uma solução mais rápida seria utilizar alguma pedofunção já desenvolvida que apresente as mesmas condições geoambientais e de uso e cobertura da área de estudo. O acesso a essas pedofunções, no caso do Brasil, ainda não é facilitada e, quando é, nem sempre os trabalhos de origem deixam claros os métodos de calibração, o domínio dos modelos, os erros de desempenho de calibração e validação, nem as equações ou modelos de machine learning claramente explicitados.

Os erros das estimativas das propriedades hidráulicas por pedofunções podem ser altos. Assim, a cautela ao usar pedofunções existentes da literatura na estimativa das propriedades hidráulicas dos solos da área de interesse é necessária, sendo que o ideal é seguir para uma investigação de campo.
Os sensores proximais (ex: pXRF, espectrômetro de fluorescência de raios x) deveriam ser mais explorados como uma alternativa para se estimar as propriedades hidráulicas do solo, pois são técnicas não destrutivas e com rápido processamento nos resultados.
Exploradas as possibilidades de representação da arquitetura do solo e funcionalidades hídricas nas escalas global, nacional/regional e de microbacia, restariam comentários sobre a temática arquitetura x processo no solo nas escala de catena, perfil e poro, mas deixaremos essa exploração para outra oportunidade.
Conclusões
Dadas as dificuldades e o diagnóstico do estado-da-arte no contexto da representação da arquitetura do solo e de suas propriedades hidráulicas, o desafio dos cientistas das áreas de física do solo e hidrologia ainda é muito expressivo. No contexto hidrológico, por exemplo, modelos de simulação para impactos do uso e cobertura do solo no comportamento das vazões de uma bacia hidrográfica ainda carecem de muito desenvolvimento e pesquisa para um avanço significativo em direção a resultados mais fidedignos.
Para isso, necessitamos de melhores bases de dados das propriedades hidráulicas dos solos, especialmente, os tropicais, o uso de sensores remotos que permitam identificar propriedades das coberturas vegetais correlacionadas com as propriedades hidráulicas do solo, e a construção de modelos físicos que possam ser implementados junto aos hidrológicos sem prejuízo da parcimônia deste.
Nosso objetivo com este artigo foi de apresentar conceitos e como a água no solo ainda carece de pesquisas inovadoras em diferentes escalas territoriais e que possam ser implementadas nos distintos estudos hidrológicos para melhorar nossa compreensão dos sistemas terrestres. Assim, esperamos ter contribuído com os interessados na área para um melhor entendimento dos desafios levantados aqui.
Sobre os autores:
*Marta Vasconcelos Ottoni e Márcio de Oliveira Candido são pesquisadores do Serviço Geológico do Brasil
*Carlos Rogério de Mello é professor da Universidade Federal de Lavras
*Quirijin de Jong van Lier é professor da Universidade de São Paulo